Incidente de desconsideração da personalidade jurídica na recuperação judicial
O Código de Processo Civil (CPC) institui o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como hipótese de intervenção de terceiros. Este incidente assume importante papel nos processos recuperatórios e falimentares, pois pode representar alternativa para a melhor satisfação dos credores sujeitos ao regime jurídico dos referidos processos.
A desconsideração da personalidade jurídica convive com outra hipótese de redirecionamento da cobrança de crédito sujeito à recuperação judicial, prevista na Lei de Recuperação Judicial e Falências[1] (LRJF), que se refere aos coobrigados, fiadores e os obrigados de regresso que possuam relação com a sociedade empresária que requer a recuperação judicial.
Esses terceiros podem ter seu patrimônio atingido mesmo com o deferimento do processamento da recuperação judicial, já que não se beneficiam da suspensão decorrente do stay period previsto na LRJF[2]. É, aliás, o que estabelece a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça: “a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória”[3].
A desconsideração da personalidade jurídica também tem o objetivo de redirecionar a cobrança do crédito sujeito à recuperação judicial a terceiros que, no caso, são sócios ou administradores da empresa em recuperação judicial. Pode, portanto e inclusive, atingir sociedades que integram o grupo da empresa recuperanda, mas que não estejam em recuperação.
A jurisprudência reconhece amplamente a viabilidade dessa desconsideração e traz como requisitos a comprovação do abuso da personalidade jurídica, em qualquer de suas facetas (desvio de finalidade, confusão patrimonial etc.), nos termos previstos no Código Civil[4].
É possível, inclusive, utilizar a desconsideração da personalidade jurídica nos processos de recuperação judicial com o objetivo de responsabilizar aquelas pessoas que abusaram do tipo societário assumido pela devedora, quando este abuso ensejar ou agravar a crise da empresa em detrimento dos credores.
Os efeitos protetivos da recuperação judicial, portanto, não salvaguardam sócios, administradores e outras pessoas (inclusive sociedades agrupadas que não estejam em recuperação) que tenham realizado atos com abuso da personalidade jurídica, de modo que podem ser atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica.
Daí porque, a interpretação de que a reforma da LRJF pela Lei 14.112/2020[5] teria previsto dispositivo para coibir a desconsideração da personalidade jurídica não nos parece correta. A disposição deixa claro que o inadimplemento de obrigações da sociedade empresária em recuperação judicial ou do falido não autoriza, por si só, a desconsideração para atingir bens de terceiros.
Isso não significa que a desconsideração está vedada. A lei se limita a dizer que o mero inadimplemento não é suficiente para a desconsideração, mas obviamente não inviabiliza que esse incidente seja instaurado quando presentes as hipóteses legais.
No caso específico da falência, a LRJF é clara ao estabelecer que a desconsideração da personalidade jurídica somente pode ser declarada pelo juízo falimentar quando presente o abuso da personalidade jurídica[6].
É preciso, assim, respeitar os requisitos materiais e processuais do incidente, de modo que, além de comprovar o abuso da personalidade jurídica e o prejuízo causado ao credor, deve ser garantida a ampla defesa e o contraditório do sujeito cujo patrimônio se pretende atingir.
Como instituto de direito processual, a aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve levar em consideração as características e sistemática da LREF, de sorte que, por exemplo, não pode suspender o processo de recuperação judicial, como prevê o CPC[7] para os demais processos.
A suspensão do processo prevista no CPC não é compatível com os processos concursais, ainda que a falência seja considerada uma execução coletiva, como, ademais, é o entendimento esposado no Enunciado 101 da III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal: “o incidente de desconsideração da personalidade jurídica deve ser observado no processo falimentar, sem a suspensão do processo”.
Além da desconsideração da personalidade jurídica, o ordenamento jurídico prevê outras formas de responsabilização do sócio ou administrador por atos abusivos. A Lei das Sociedades Anônimas[8], por exemplo, prevê a responsabilidade do administrador de sociedades anônimas pelos prejuízos que a abusividade de seus atos causarem. Há, ainda, a possibilidade de aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas, no que se refere à responsabilização do sócio ou administrador por atos abusivos, às sociedades limitadas, conforme autoriza o Código Civil[9].
Caberá à doutrina e jurisprudência dimensionarem o âmbito de aplicação de cada uma das ferramentas para responsabilização dos sócios por atos abusivos, já que não se confundem entre si e tampouco com a desconsideração da personalidade jurídica, a qual tem aspectos e objetivos próprios.
O tema da responsabilidade dos sócios e administradores por atos abusivos, como fraudes contábeis, inclusive para fins de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, adquirirá destaque no âmbito da recuperação judicial, sobretudo em um cenário de alta de pedidos de recuperação judicial. O número total de pedidos no primeiro trimestre de 2023 é o maior desde 2018: foram 289 pedidos de recuperação judicial e 255 de falência, segundo dados da Serasa Experian.
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Andréa Pitthan Françolin, sócia responsável pela área de contencioso cível e arbitragem do Iwrcf (afrancolin@iwrcf.com.br – (11) 4550-5005)
Rubens Sampaio Carnelos, advogado sênior da área de contencioso cível e arbitragem do Iwrcf (rcarnelos@iwrcf.com.br – (11) 4550-5022)
[1] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
- 3º – Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
[2] O stay period significa a suspensão das execuções ajuizados contra a sociedade empresária em recuperação judicial pelo prazo de 180 dias, prorrogável por igual período, uma única vez, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência – Art. 6º, incisos II e III, bem como o § 4º da LRJF.
[3] Súmula 581/STJ.
[4] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
[5] Art. 6º-C. É vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reguladas por esta lei.
[6] Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.
[7] Art. 134, § 3º. A Instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.
[8] Lei 6.404/76. Art. 158 – O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II – com violação da lei ou do estatuto.
[9] Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples. Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.