O Impacto da Pandemia da COVID-19 no Adimplemento Contratual
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (“OMS”) declarou que a rápida e alta expansão da Covid-19 já se caracteriza como uma pandemia[1].
Em razão disso, a OMS e órgãos de saúde estatais apresentaram medidas a serem tomadas para evitar a proliferação da Covid-19, como redução de reuniões, de aglomerações de pessoas e de viagens internacionais.
Tais recomendações foram acatadas por diversos países, principalmente no setor público, e por algumas sociedades privadas, cada qual em um nível de restrições.
A título exemplificativo, diversos países, incluindo o Brasil, em recente decisão, fecharam suas fronteiras, não permitindo a entrada de estrangeiros em seu território durante 30 dias[2], de modo a evitar a propagação da Covid-19.
Essas restrições provocadas pela pandemia podem gerar, segundo a UN Trade Agency[3], um prejuízo econômico de 1 trilhão de dólares durante 2020, principalmente em razão do receio de interrupções da cadeia de produção da China.
Ainda, de acordo com economistas da ONU[4], apenas no mês de fevereiro/2020, houve uma queda de aproximadamente 50 bilhões de dólares na exportação de produtos manufaturados.
No Brasil, foi sancionada a Lei nº 13979/2020, que trata das medidas “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, e na cidade de São Paulo, no dia 17/03/2020, foi decretada situação de emergência, para enfrentamento dessa pandemia.
O Estado de Santa Catarina, no dia 18.3.2020, decretou estado de emergência, determinando diversas medidas restritivas como a suspensão das “atividades e os serviços privados não essenciais, a exemplo de academias, shopping centers, restaurantes e comércio em geral” (Decreto nº 515/20, art. 2º, II), o que impossibilita a manutenção das atividades produtivas de diversos setores no Estado.
Por sua vez, o Estado de São Paulo recomendou que “todos os shoppings e academias dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo fiquem fechados até 30 de abril de 2020”, assim como que “empresários e lojistas concedam férias coletivas a funcionários durante o período de paralisação e evitem demissões”[5].
Por fim, em 20/03/2020, o Senado aprovou projeto de decreto legislativo que reconhece que o país está em estado de calamidade pública em razão da pandemia do coronavírus[6].
Esses impactos econômicos e restrições implementadas podem vir a impossibilitar o cumprimento de obrigações contratuais, caracterizando, em tese e quando efetivamente existente essa relação causal, a hipótese de caso fortuito ou força maior, excludente de responsabilidade (art. 393 do CC[7]).
Da mesma maneira, esse impacto pode, também em tese, gerar um desequilíbrio contratual, estando a parte prejudicada apta a invocar a teoria da imprevisão, seja para a revisão da avença ou até mesmo para a sua resolução (317[8] e 478[9] do CC).
Diz-se em tese porque o Judiciário brasileiro não detém um posicionamento objetivo quanto aos elementos que efetivamente caracterizam essas excludentes, analisando tais aspectos casuisticamente.
De todo modo, e em linhas gerais, para a configuração de caso fortuito ou força maior – que não possuem distinção conceitual legal, apenas doutrinária -, deve-se constatar um fato inevitável, cujos efeitos não era possível obstar ou impedir.
Para Wald[10], “tal definição abrange tanto os fatos naturais (incêndio, inundação) como os fatos de terceiros ou do Poder Público (guerra, ato do governo), desde que caracterizados pela inevitabilidade e irresistibilidade”. Ressaltando que “a imprevisibilidade não é requisito necessário da força maior e do caso fortuito, podendo um fato ser previsível mas irresistível”.
De acordo com o posicionamento do Min. Marcos Buzzi, “somente situações consideradas excepcionais, de verdadeira calamidade pública, é que tem o condão de romper os riscos previsíveis que a concessionária deve absorver”[11].
A aplicabilidade da teoria da imprevisão, de acordo com a doutrina, estará condicionada à comprovação de “que as modificações das circunstâncias possam embasar a resolução ou a revisão da relação contratual, é necessário o requisito da excepcionalidade dos eventos, que se manifesta (a) na alteração radical das condições econômicas objetivas no momento de execução, em confronto com o ambiente objetivo na contratação, (b) no agravamento excessivo para um dos contratantes e benefício exagerado para outro, e (c) na imprevisibilidade daquelas modificações.”[12]
Nesse sentido, considerando que a atual pandemia é um fato irresistível e, de certa forma e sobremais por sua dimensão, imprevisível, já considerado no país um estado de calamidade pública, pode-se afirmar que, em certos casos, e sempre respeitada a relação causal e a proporcionalidade, será possível demonstrar que o inadimplemento contratual decorreu de força maior.
Haverá situações, ainda, em que esta pandemia, como fato extraordinário e imprevisível que é, afetará o equilíbrio originalmente estabelecido pelas partes na avença, reclamando a intervenção do Poder Judiciário para, em prestígio ao princípio da manutenção dos contratos, evitar a sua resolução e corrigir o desvio causado ao pacto, aplicando-se a teoria da imprevisão.
Por fim, caberá exclusivamente ao devedor a comprovação da ocorrência do evento, bem como dos seus efeitos sobre o adimplemento do contrato, de maneira que as teorias acima destacadas possam ser eventualmente aplicadas, tudo a depender do exame de cada caso concreto.
[1] Segundo a OMS, a pandemia é uma disseminação mundial de uma nova doença, que possui presença da doença em ao menos dois continentes, sendo tal doença transmitida entre seres humanos.
[2]https://edition.cnn.com/2020/03/17/europe/europe-shuts-its-borders-to-stop-coronavirus-intl/index.html; The EU shuts its borders to slow the coronavirus crisis. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51966428
[3] https://news.un.org/en/story/2020/03/1059011; Coronavirus update: COVID-19 likely to cost economy $1 trillion during 2020, says UN trade agency.
[4] https://news.un.org/en/story/2020/03/1058601; Coronavirus COVID-19 wipes $50 billion off global exports in February alone, as IMF pledges support for vulnerable nations.
[5] http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/governo-recomenda-fechamento-shoppings-academias/
[6] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/20/em-sessao-historica-senado-aprova-calamidade-publica-contra-covid-19
[7] Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
[8] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
[9] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
[10] WALD, Arnold; Direito Civil – Direito das Obrigações e Teoria Geral dos Contrato; 20ª Ed.; Editora Saraiva, 2011.
[11] STJ; AResp nº 1.145.485; Min. Marcos Buzzi; j. 3.4.2018.
[12] LEÃES, Luiz Gustavo Paes de Barros. A Onerosidade Excessiva no Código Civil. Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 4 | p. 721 – 736 | Jun / 2011 | DTR\2006\737.