A Divulgação de Demandas Societárias e o Sigilo dos Processos Arbitrais
Em 11 de fevereiro de 2021, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) divulgou o edital de audiência pública SDM nº 01/2021, tendo por objeto a alteração da Instrução CVM nº 480, de 7 de dezembro de 2019, criando um novo dever de comunicação por emissores de valores mobiliários.
De acordo com a Instrução CVM nº 480/2019, as companhias autorizadas a negociar quaisquer valores mobiliários em mercados regulamentados são obrigadas a divulgar ao mercado uma série de informações, como, por exemplo, acordos de acionistas arquivados na sede do emissor e também política de negociação de ações.
A comunicação ao mercado visa atender principalmente aos investidores minoritários, de modo a fortalece-los na tomada de decisão e diminuindo a característica natural de assimetria informacional no mercado de capitais.
Agora, a CVM pretende criar uma nova obrigação, a fim de que o emissor divulgue comunicado sobre a existência de demandas societárias. De acordo com o edital da audiência pública:
“(…) a Minuta propõe que o novo dever de divulgação se limite às demandas societárias em que o emissor, seus acionistas controladores ou seus administradores figurem como partes e: (i) que envolvam direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; ou (ii) nas quais possa ser proferida decisão cujos efeitos possam atingir a esfera jurídica do emissor ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão do emissor que não sejam partes do processo.”
Textualmente, o edital faz menção à ação de anulação de deliberação social, à ação de responsabilidade de administrador e à ação de responsabilidade de acionista controlador, contudo, a CVM indica que a menção a esse tipo de ação é somente exemplificativa
Um dos pontos que merece reflexão é o aparente conflito entre a proposta apresentada pela CVM e as costumeiras cláusulas de confidencialidade contidas nos regulamentos de câmara de arbitragem – meio de solução de conflito invariavelmente utilizado para dirimir demandas societárias.
A CVM já deu um início ao debate no próprio edital, ao dispor que “na visão desta Autarquia, a previsão de sigilo contida nos regulamentos de muitas câmaras arbitrais é inadequada, quando não incompatível com a resolução de certos conflitos de mercado (…).”
Nesse sentido, embora reconheça que não tem competência para propor modificações às câmaras arbitrais, a CVM prossegue alertando que “é indiscutível que os regulamentos das câmaras não podem contrariar dispositivos legais e regulamentares e, nesse sentido, a Minuta esclarece que as obrigações de divulgação refletem preocupações centrais do regramento do mercado de capitais e não pode ser afastadas por convenções de arbitragem, regulamento de câmaras arbitrais ou por qualquer outra convenção, respeitadas as hipóteses e observados os limites aplicáveis de sigilo decorrente de lei (art. 1º, §1º, do Anexo 30-XLIV).”
De fato, o debate acerca do alcance da cláusula de confidencialidade nas arbitragens é intenso. Para alguns, a confidencialidade é regra derivada dos usos e costumes da adoção do processo arbitral[1], para outros, não possui base legal[2].
A particularidade da confidencialidade em disputas envolvendo sociedades que participam do mercado de capitais também é objeto de ampla discussão. Neste particular, a doutrina já sinalizou que “no caso das sociedades anônimas abertas, por exemplo, face ao dever de full disclosure a que estão submetidas, em virtude, principalmente, da captação da poupança popular, faz-se necessária em certa medida, uma mitigação ou relativização do sigilo inerente aos procedimentos arbitrais.”[3]
No entanto, o próprio Regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado, instituição ligada à B3, para solução de conflitos no âmbito do mercado de capitais, em seu artigo 9.1 é expresso ao consignar que “o procedimento arbitral é sigiloso, devendo as partes, árbitros e membros da Câmara de Arbitragem abster-se de divulgar informações sobre seu conteúdo, exceto em cumprimento a normas dos órgãos reguladores, ou previsão legal.”
Em verdade, não se discute que os investidores devem estar munidos de informações precisas para atuar no mercado de capitais, no entanto, também não se pode desconsiderar que o sigilo do processo arbitral é uma das características mais buscadas pelos litigantes que elegem o referido método de solução de conflitos.
Diante disso, é muito bem vinda a discussão trazida pela CVM no bojo do edital de audiência pública, a fim de que todos os interessados possam contribuir com o debate sobre o tema.
Aos interessados, sugestões e comentários à audiência pública devem ser encaminhados à CVM até 12 de abril de 2021.
[1] “Admitindo-se que a confidencialidade é inerente ao procedimento arbitral, elegem essa via com essa finalidade específica (…) em razão dos deveres laterais da boa-fé, impostos a ambas as partes contratantes, entendemos existir, no direito brasileiro, um dever de sigilo, sendo este da essência da própria arbitragem em relação a dados, informações e documentos trazidos ao procedimento arbitral por qualquer das partes. Corolário desse standard de comportamento exigido das partes é o dever de manter confidencial a respectiva sentença arbitral proferida.” PINTO, José Emílio Nunes. A confidencialidade na arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, v.2, n.6, p. 25-36. Jul/sete., 2005. P. 33/34
[2] “A interpretação dos trechos legais, ‘desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo’ e ‘desde que comprovada a confidencialidade estipulada na arbitragem’, indica que o Direito brasileiro adota a posição de que a confidencialidade não é qualidade intrínseca à arbitragem, mas deve decorrer de previsão convencional específica das partes. A confidencialidade precisa, em outros termos, ter sido estipulada na arbitragem. Ou precisa decorrer, claro, de previsão legal setorial específica, inexistente, ao que se sabe, no Direito brasileiro.” FICHTNER, José Antonio. MANNHEIMER, Sergio Nelson. MONTEIRO, André Luís. Teoria geral da arbitragem – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[3] VERÇOSA, Fabiane [et al.]. Arbitragem e mediação: temas controvertidos. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.