A criança e o adolescente nas redes sociais: quais as melhores práticas?
Quanto se trata da proteção do menor, o Brasil não é terra sem lei. Ao contrário. Acompanhando as tendências mais modernas de grandes mercados, além de importantes previsões da Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Brasil possui um sistema de autorregulamentação bastante evoluído para regular a publicidade infantil, o Conselho Nacional da Autorregulamentação Publicitária (Conar).
Há, também, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que com muita propriedade regula a proteção integral à criança e ao adolescente, estabelecendo os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
O ECA tem como princípio a proteção integral ou da prioridade absoluta da criança (pessoa com até 12 anos de idade incompletos) e do adolescente (pessoa entre 12 anos completos e 18 anos de idade incompletos[1]), reconhecendo-os como sendo sujeitos com direitos e deveres.
O ECA reconhece ser “dever da família, da comunidade e da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (…)”[2].
O objetivo deste comando legal é preservar o potencial da criança e do adolescente, oferecendo condições básicas para que o seu desenvolvimento seja natural, equilibrado e contínuo, tendo plenas condições para a vida adulta. De acordo com a Eliana Araque dos Santos[3] (2006), essa proteção integral não é voltada apenas à pessoa, à preservação de sua dignidade, mas também à sociedade e à preservação da qualidade de vida.
A despeitos de todas as proteções existentes, é de conhecimento geral que com o advento da internet e da tecnologia as informações e conteúdos passaram a ser propagados com maior facilidade e velocidade. As informações que antes eram filtradas por fronteiras e controles de censura impostos aos veículos de comunicação passaram a atingir todos os diferentes públicos de forma simultânea e em tempo real.
Esse é um tema tão relevante que mobilizou 23 associações, sendo que uma delas é Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens (ABRAL). Dessa união surgiu campanhas que têm como tema central a comunicação responsável de produtos e serviços destinados a ao público infantojuvenil. As atenções estão voltadas ao conteúdo digital, que foi inspirado no CBAP e no Guia de Publicidade para Influenciadores Digitais[4], recentemente publicado pelo Conar.
Essa iniciativa pretendeu dialogar com vários públicos, mas um em especial: o profissional de comunicação. Hoje, o ambiente digital, cada vez mais, um olhar que vai além da criação do conteúdo. Pede que esse conteúdo respeite práticas saudáveis de fala, com ética e responsabilidade. Por exemplo, se o conteúdo publicitário está sendo divulgado por um influenciador de forma estruturada, isso deve estar evidente no momento de sua divulgação. Há regras para isso, e o material construído pelas entidades destaca as principais.
Essa imensa e tentadora oferta de conteúdo, somada à atual conjuntura da sociedade, onde os pais trabalham em longas jornadas e as ruas não oferecem mais segurança, está à disposição das crianças e adolescentes, que antigamente interagiam entre si e brincavam de forma lúdica, e agora têm passado tempo dentro de casa consumindo conteúdo digital nas redes sociais, nos jogos eletrônicos e na internet.
Essa nova realidade nos submete a importantes reflexões sobre o que é a infância nos dias atuais. Qual seria o papel do conteúdo digital na vida dos menores? Quais cuidados são necessários nas redes sociais?
A problemática desse acesso desenfreado de conteúdo já está sendo colocada à prova. Recentemente foi noticiado que o pai de uma criança ajuizou uma ação judicial contra uma rede social muito utilizada no Brasil e no mundo, que tem como atividade disponibilizar diversos tipos de conteúdo por meio de vídeos criados por seus usuários. De acordo com o que consta das matérias sobre o tema, o pai defende que esta rede social seria responsável por infringir o ECA ao veicular vídeos com conteúdo sensíveis para as crianças e adolescentes[5].
De acordo com o que consta das matérias divulgas, a ação tem por objeto aumentar a política de fiscalização da rede do TikTok, obrigando-o a mostrar, em todos os conteúdos postados, a classificação indicativa da faixa etária, bem como tornar obrigatório a verificação da identidade dos usuários como uma maneira de proibir o acesso aos vídeos sem que haja uma aprovação de cadastro e login, prevenindo que conteúdos inapropriados cheguem ao acesso do público infantil.
Avaliando-se os documentos e informações divulgados na plataforma do TikTok, é possível constatar que tal plataforma possui as chamadas “Diretrizes da Comunidade”, onde consta um capítulo específico para tratar da segurança de menores. De acordo com a diretriz, os usuários da plataforma devem atender aos requisitos de idade mínima para utilizá-la, podendo a plataforma remover contas de menores de 13 anos, quando e se identificadas.
As diretrizes da plataforma também preveem que: “os titulares de conta com menos de 16 anos de idade não podem utilizar mensagens diretas ou fazer lives e seu conteúdo é inelegível para aparecer no feed “Para você” (os limites de idade podem ser mais elevados em algumas regiões). Os titulares de conta com menos de 18 anos de idade não podem enviar ou receber presentes por meio dos nossos recursos de envio de presentes virtuais (…)”[6].
De acordo com a reclamação do pai, apesar de as disposições das Diretrizes da Comunidade trazem regras e restrições de conteúdo, na prática as crianças e adolescentes possuem fácil acesso a todos tipos de conteúdo da plataforma, em especial se consideramos o fato de que é possível acessar tal conteúdo sem mesmo ter uma conta na plataforma, o que contraria as próprias Diretrizes da Comunidade.
O autor da ação concedeu uma entrevista ao Tilt UOL, alegando que, por ser pai de dois filhos menores de idade, tem o dever de manifestar a sua preocupação com os conteúdos inapropriados pois não há uma política efetiva para proteger as crianças e os adolescentes. Também suscitou que, através da rede social, é possível a busca por conteúdos inapropriados, pois, apesar da plataforma proibir a busca de alguns termos como “sexo”, é possível o acesso a tal conteúdo quando buscado por sinônimos ou em formato de códigos, como por exemplo “s3xo”.
Apesar de o processo estar em segredo de justiça, consta das matérias jornalísticas de que o Ministério Público de São Paulo tem acompanhado o caso de perto com grande interesse.
Não se questiona aqui que o acesso à informação é importante e salutar ao processo democrático de direito e até mesmo ao desenvolvimento dos menores. Não é à toa que a liberdade de comunicação e do pensamento é um dos nossos princípios constitucionais mais importantes.
O que se propõe por esse artigo é uma pausa para refletir que abusos podem existir e, portanto, caberia um maior cuidado e responsabilidade dos provedores de conteúdo ao se relacionar ou ofertar conteúdo aos menores de idade, inserido mecanismos robustos de controle de acesso que permitam o correto direcionamento do conteúdo ao público adequado.
A despeito do momento da história que estamos passando, a infância é e sempre será uma fase em que os seres humanos ainda estão em desenvolvimento psíquico, razão pela qual, em consonância com as disposições da Constituição Federal do Brasil[7] e do artigo 6º do ECA, esse público deve ser visto como seres vulneráveis, independentemente da sua capacidade de raciocínio ou evolução natural em relação às gerações anteriores.
Esse cuidado com o menor não requer leis mais restritivas ou mudanças radicais das leis vigentes. Apesar de o papel de educar caber primordialmente aos pais e, em segundo plano, ao Estado, que deveria garantir o acesso à educação de qualidade, o simples compromisso de os provedores de conteúdo digital adotarem um controle mais rígido e eficaz de acesso ao seu conteúdo, compromisso esse pleiteado pelo pai na ação promovida contra o TikTok, seria suficiente para proteger a vulnerabilidade do menor e garantir uma infância mais rica e saudável.
Artigo originalmente publicado pelo JOTA
[1] Artigo 2° da Lei 8.069/90.
[2] Artigo 4º da Lei 8.069/90.
[3] SANTOS, Elaine Araque dos. A naturalização do trabalho infantil. Revista TST, Brasília, v. 72, n. 3, p. 105-122, set./dez. 2006. Disponível aqui.
[4] Guia, disponível no link.
[5] SANTIAGO, Abinoan. Pai acusa Tiktok na Justiça por burlar o ECA; ação pode afetar outras redes. Tilt UOL. Disponível aqui.
[6] Diretrizes da Comunidade disponível aqui.
[7] Artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.